quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um amor maior que o mundo, de Ana Carolina Melo de Lima

         
         Era uma fria noite do típico inverno de Berlim de janeiro de 1940 quando o pai de Peter chegou. Ele admirava aquele homem mais que tudo. Sempre que sentavam à mesa para jantar, Stephan tinha incríveis histórias pra contar sobre seu trabalho.
         Peter sabia que, naquela época, iria seguir os passos do pai, mesmo que não quisesse. Era meio que um fardo, e ele já tinha 16 anos. Sabia que, como tudo na vida, tudo tem um lado negativo e outro positivo, então preferia pensar mais no lado positivo da ocupação do pai que no lado negativo.
         As histórias que Stephan contava eram extraordinariamente bem contadas, mesmo que um tanto cruéis e repulsivas: o pai de Peter trabalhava em um campo de concentração, e se orgulhava disso. Era totalmente a favor dos ideais de nazistas: pessoas que roubam a terra dos outros devem ser punidas. Pessoas que não tem o sangue puro não devem viver entre pessoas com o sangue mais puro da face da Terra.
         Peter achava interessante o modo como o pai contava que usou a arma, uma bomba... mas ficava horrorizado com o genocídio que, conscientemente, o pai não temia esconder do filho: a matança, a tortura, contava detalhe por detalhe pra que o filho entenda que aquilo era preciso, que os judeus são pessoas impuras que utilizaram da terra alemã por tempo demais.
         - Filho, isso é necessário – dizia Stephan quando via o rosto aterrorizado de Peter – o que você faria se alguém se apossasse da sua casa da árvore sem pedir?
         - Eu gostaria que ele saísse... Mas não o matando.. isso é ruim.
         - Mas e se ele não quisesse... e se ele quisesse te bater pra poder ficar lá ?
         - Então eu bateria nele também – e Peter percebeu que aquilo não parecia tão ruim: estavam apenas “pegando de volta” o que era deles não é mesmo?
- Peter: daqui a 4 anos, quando puder entrar para nosso grupo também, me dirá o que pensa e te lembrarei esse dia.

Os anos passaram e Peter Ahrensdorf, como devia ser chamado agora, ocupava o lugar de seu pai: trabalhava num campo de concentração em Arzberg, e, como era notório, havia mudado de pensamento: tinha a mesma sede de vingança que o pai. Sua mãe, Manuela, dizia que isso era algo que foi sustentado pela influencia do pai: Peter era um menino solitário, mas não parecia ter o instinto maléfico do pai.
Peter estava inacreditavelmente e infelizmente, ao nosso ver, parecido com o pai. Não media esforços pra que haja sofrimento de alguém como um judeu.
Em fevereiro de 1944, quando chega um navio com novos “sangue impuro”, Peter avista algo que mudaria sua vida para sempre.
Logo de frente, avista uma moça: assustada, estava encolhida. Aquela moça era a mais linda que Peter já havia visto na vida. Seus cabelos muito negros e sua pele muito branca a transformava numa deusa, mesmo que as condições em que estava vivendo era precárias.
Peter viu-se enfeitiçado pela moça.
E corroído pelo sofrimento.
Não poderia se apaixonar por uma pessoa que não tenha raça ariana.
Essas e muitas outras informações e pensamentos passaram pela mente de Peter por questão de segundos, o que o fez, por impulso, tomar uma decisão.
- Senhor – disse Peter – Seria de meu agrado encaminhar nossos novos “hóspedes” – rindo – para seu lugar. Tenho permissão?
- Claro, claro – disse o general Tobias Petri.

         Peter não entendia o que estava fazendo, mas tinha algo dentro dele que o controlava. Nunca me senti assim antes, e pensou: “o que estou fazendo?”
            Na identificação, Peter não conseguiu prestar atenção em ninguém se não a moça dos cabelos muito negros. Em sua vez, ficou mais maravilhado ainda: tinha o rosto mais perfeito, a pele como a de um bebê, os olhos muito negros que fixavam o olhar.
         - Qual o seu nome? – e todos perceberam que, pelo tom de voz, ele a considerava diferente dos outros. Muitos adoraram, muitos odiaram.
         - Sabine Lerner, senhor – e continuou com o olhar fixo.
         - Qual a sua idade? – com a mesma entonação de voz
         - 18 anos, senhor.
         - Certo. De que cidade vens?
         - Melle, senhor.
         E com isso, Peter se viu ainda mais apaixonado por Sabine: o jeito pelo qual ela respondera as perguntas, com segurança e olhar fixo demonstrou que era uma moça determinada. Que sabia que não deveria estar ali.

         A noite sempre fria castigava aquelas pessoas. Isso era o de menos. O que passava na mente deles é: por quê? Por que estão fazendo isso? Serão esses enviados divinos, para que possam se comportar e agir como tais? Sim. Eles pensam que são, por que alguém que faz algo assim tem que ter algo de especial não é mesmo?
         Cada dia, cada noite, cada minuto, cada segundo... Cada instante, Peter pensava em Sabine, mesmo que nem tenha conversado com ela diretamente. Uma moça difícil de esquecer o rosto. E o mais impressionante é que ele nunca tinha sentido isso. Não tinha tempo pra isso. É, deve ser isso. Estava ocupado demais acompanhando em vertente as idéias do pai. Nem sabia o que era isso. Nem via isso em seus próprios pais.
         Enquanto pensava na moça-dos-cabelos-negros, estava ela sofrendo com o frio. Será que Peter estava obcecado demais em pensamentos que não pensava no bem estar da moça? Ou estava consumido pela culpa de se apaixonar por alguém “inapaixonável”? Ambos.

         No dia seguinte, o grupo de mulheres que veio no comboio com Sabine foi trabalhar em uma fábrica têxtil. O frio ainda castigando os “sangue ruim”. Uma cena perturbadora choca Sabine de tal maneira que a moça desmaia: uma de suas colegas, Katrina, morre. Congelada. O fato perturba a moça a ponto de que um supervisor é chamado. Nesse instante, Peter cai em realidade: tinha que tirar aquela moça daquelas condições.
         - Senhor, há uma mulher passando mal – disse o soldado, irritado, a Peter.
         - Qual é o nome?
         - hun, deixe-me ver senhor: Sabine Lerner – e a expressão no rosto de Peter mudou totalmente.

         - O que aconteceu com essa ai? – perguntou Peter, tentando disfarçar a
preocupação com a moça.
         - Uma colega de viagem morreu congelada – disse uma servente -  Melhor. Já estava começando a ficar inválida. De qualquer forma, Lerner viu e ficou desse jeito. Que vamos fazer com ela?
         - Bom, eu tomo conta disso. Vou ver o que posso fazer. Talvez mudá-la de departamento seja o melhor a fazer.
         - Certo então senhor.
         E Peter olhou nos olhos de Sabine.
         Pareciam estar fora de foco, de órbita. Seu rosto estava extremamente branco e sua pele fria como mármore. Parecia morta. A idéia assustou Peter, que carregou a moça do jeito brusco mais brando que conseguiu, mesmo que a moça nem pudesse sentir.

         O general foi arrastando a moça com o maior cuidado até sua sala. Chegando lá, sentou a moça e deu-lhe água. Esperou que voltasse ao normal para poder fazer as perguntas.
         - Onde estou? – perguntou a moça, desnorteada
         - Está na minha sala, senhorita – disse Peter, aliviado que a moça esteja bem.
         - Ó meu deus*! O que aconteceu?
         - A senhorita desmaiou ao ver Katrina Klinger cair dura e morta no chão – disse Peter, tranquilamente. E a moça caiu em lágrimas.
         De repente, parou de chorar e olhou com uma expressão de medo e confusão para o rosto de Peter.
         - Senhor, posso fazer-lhe uma pergunta?
         - Claro.
         - Por que me trata diferente? Sou especial? Imagino que se fosse outra teriam matado também. Por que me trouxe aqui para me recuperar e não simplesmente mandou me matar também?
         A pergunta pegou Peter de surpresa. Nunca tinha feito isso antes. Estava feliz convivendo com o sentimento reprimido. O que diria a moça agora?
         - Bem, essa é uma boa pergunta. Que me deixa mais intrigado ainda.
         - Estou confusa, senhor.
         - Sabine, não precisa me chamar de senhor enquanto estamos sós.
         - Certo, senh.. desculpe. Mas eu não sei o seu nome, general.
         - Agora sabe. É Peter Ahrensdorf. – e sorriu.
         - Certo. Poderia me responder a pergunta.
         - Aaah, claro. Não sou bom com isso. Você é uma moça difícil de esquecer, sabe. Sua fisionomia é uma das mais intrigantes e lindas que já vi em vida. Me vi controlado por um sentimento quando te vi. Ainda não sei o que é isso. E, hoje, estou mais... como dizem... apaixonado ainda.
         A explicação surpreendeu a moça, que novamente pareceu em choque.
         - Estás bem? – perguntou Peter
         - Sim.
         - Então diga algo. Outra coisa que me deixa mais fascinado por ti: sua inteligência, coragem e determinação. É notório em suas palavras.
         - Desculpe senh.. Peter... é que simplesmente não entendo. Sou uma judia. Não sou ariana. Sou uma sangue-ruim. Como pode ter se apaixonado, por mim?
         E aí está Peter corroído novamente. Ele simplesmente não podia se apaixonar pela moça. Mas era incontrolável. Era um sentimento independente.
         Assim como os pensamentos sobre a moça, vieram a mente pensamentos sobre a cultura da moça: não via mais os judeus como sujos e ladrões. Começava a pensar neles como iguais.
         - Me questiono sempre isso Sabine. – disse Peter - E, acredite, é algo que me consome. Cada dia mais os vejo de forma diferente. Me refiro a todos vocês.
         - Mas o senhor nem ao menos me conhece...
         - Pois é.. mas o que posso eu fazer?
         - Sim... mas o que pretende fazer? Não podemos ser vistos juntos. Será um problema para ambos.
         - Estou eu sentindo que o sentimento é recíproco ou me engano? – e uma onda de algum outro sentimento desconhecido veio a tona.
         - Não sei bem. Eu não sabia que você se sentia assim. Não tinha parado pra pensar; eu não podia – e seus olhos foram enchendo de lágrimas. - Você me parece o general menos ruim e repulsivo de todos os que estão lá fora.
         Foi uma facada. Ouvir de Sabine que ele era repulsivo e ruim foi um momento difícil da vida de Peter. Vieram a tona sentimentos conhecidos agora: ódio e raiva.
         - Pensa isso de mim? – com remorso nas palavras.
         - Como poderia pensar outra coisa, senhor?
         - Pois bem. Mudarei seu modo de pensar.
         E Sabine riu alto.
         - Claro! Vai mudar por causa de uma judia nojenta? Vai deixar de ser o que é? Vai fugir comigo? – e lágrimas novamente fizeram a moça chorar.
         - Sim, é o que farei. E irei até o fim para conseguir o que quero.
         No fim da conversa, com Sabine aos prantos, perceberam que estavam muito perto um do outro. Pareciam quase um só.
         - Por você, eu seria aquele garoto que se ajoelharia e a pediria em casamento, mesmo que isso me custasse a morte.
         E, com uma audácia que nunca imaginou que tivesse, Peter levou seu rosto para perto do de Sabine. Seus lábios se tocaram. Os sentimentos e sensações que Peter teve são insubstituíveis. Nunca se sentiu tão feliz em toda sua vida. Na verdade, nunca se sentira feliz na vida, ele pensava. E o que parecia melhor era que Sabine correspondia. Sim, o sentimento era recíproco. Ela gostava dele também.
         Quando seus lábios desgrudaram, se olharam.
         - Aaah, certo. Farei de tudo para que sua situação mude. Prometo – e sentiu que teria um grande desafio pela frente.
         - Preciso ir antes que desconfiem – disse a moça, aparentemente feliz.
         Mas era tarde demais.
         Apenas puderam ver a sombra de alguém que acabara de sair correndo e o desespero se distribui por cada nervo do corpo do “casal impossível”.

* o uso da palavra em letra minúscula expressa um deus da cultura judia desconhecido.

            Diante das circunstâncias, Peter teve que pensar rápido.
         - Vá, e aja como se nada tivesse acontecendo: tudo vai dar certo Sabine, confie em mim.
         - Tudo bem, meu amor – e Peter se sentiu realizado – mas, estou com medo – disse Sabine com os olhos angustiados.
         E se abraçaram, se beijaram.
         - Aah, Peter, eu quero que fique com isso: é o anel de minha mãe – e entregou para ele um anel de ouro e esmeraldas.
         - Calma, vai dar tudo certo.
Saíram da sala sem nenhuma palavra.
         Quando chegou no compartimento, a supervisora olhou, olhou, e não disse nenhuma palavra: apenas um sorriso inexpressível. Sabine não sabia o que pensar.

            Passaram-se os dias e, percebeu-se que era só ilusão: ninguém tinha contado sobre os dois. Se isso tivesse acontecido, já teriam sido chamados.
         Nesse meio tempo, Sabine e Peter foram alimentando seu amor apenas com olhares. Sabine tinha a ilusão de uma vida melhor; já Peter, sua culpa e dilema: amava alguém que não podia amar, e, enquanto isso, ela poderia estar sofrendo. Suas noites eram péssimas por causa disso.
         15 dias após o acontecimento, Peter acordou esperançoso, pois tinha bolado um plano: amava Sabine mais que tudo, e isso bastava para abandonar a idéia de seguir as tropas de Hitler. Eles fugiriam naquele mês mesmo.
         Mas, quando foi ver sua amada, não a encontrou. Pensou ele que, poderia estar trabalhando, e isso o deixou com mais vontade de colocar seu plano em prática. Procurou, procurou, mas não achou. Começou a ficar preocupado, mas não podia dar indícios disso.
Naquela tarde, foi chamado pelo general. Não sabia por que, mas foi, ainda angustiado com o desaparecimento repentino de Sabine.

Peter não sabia o que pensar: por que o general o chamou? O que Peter tinha feito? Passou pela mente Sabine, mas logo afastou a idéia, julgando-a fora de cogitação, apenas para se sentir melhor. Chegando lá, o soldado que o levou apresentava um enorme sorriso no rosto.
- Olá Ahrensdorf.
- Olá general – fazendo uma referencia
- Conhece Sabine Lerner? – E os nervos de Peter congelaram.
- Ooh, sim senhor, uma moça do compartimento mais próximo, estou certo? – Peter tentava ao máximo não demonstrar sua preocupação.
- Aaah sim, um soldado pensou ter visto vocês se beijando. Creio eu que ele estava vendo coisas.
E Peter empalideceu. O que teriam feito com ela? Não conseguia dizer nada.
- É, isso é expressamente proibido, então, já demos um jeito.
- O QUE FIZERAM COM ELA? – disse Peter, com lágrimas nos olhos e expressões de revolta.
E, com um passo, o general abriu a cortina que estava ao seu lado, e Peter pode ver.
Sabine tinha sido morta, e da forma mais brusca possível. Seu corpo apresentava marcas de tortura terríveis, de cortes e choques. Parecia que Peter tinha morrido naquele momento.

            Com um misto de revolta, ódio e dor, Peter olhava para sua amada. Nunca se sentiu pior. Sentia-se até culpado: não pensou num plano rápido o bastante.
         - Isso é o que acontece quando há uma inversão de papéis. Fizemos um favor, afinal, não poderiam ficar juntos mesmo? Ela não é como você – E as palavras do general só aumentaram a dor e revolta de Peter, que olhava para ele com um ódio imenso.
         Pesando o mais rápido que pode, Peter disparou tiros e feriu as três pessoas que estavam lá.
         - Isso não vai ficar assim, querida. – E lágrimas escorreram de seus olhos.
         Pegou o corpo de Sabine, enrolou-o numa coberta e a colocou num saco, para que ninguém percebesse e partiu. Queria que a moça tivesse um fim digno, talvez.
            Quando saiu do compartimento com o “lixo”, trancou a porta, com medo que alguém desconfiasse. Por mais incrível que pareça ninguém disse nada.    
Como deixei isso acontecer? Pensou Peter. COMO? Ele a amava tanto. Como ele sofreu por não ter a idéia a tempo.
         Com lágrimas aos olhos e uma expressão inconformada, Peter enterrou Sabine num Cemitério perto do Campo de concentração. Cavou a cova com suas próprias mãos. E a única lembrança da moça foi o anel de sua mãe.       
 
A dor da perda viveu com Peter durante toda sua vida. Bom, pelo menos agora ele era mais ‘humano’. Sabine fez isso. Ele saiu do exército e a partir daquele dia, tinha repulsa de nazistas e ajudava os judeus com tudo o que podia, e o que não podia, até o dia 2 de setembro de 1945. Ele via sua amada neles. Ele se casou, teve filhos, mas nunca amou alguém como a moça-dos-cebelos-negros.

By: Ana Carolina Melo de Lima
@whoiscarol_

Nenhum comentário:

Postar um comentário